vendredi 11 juillet 2008

Uma Deusa será eternamente uma Deusa


Hanna e eu, privilégio é isso, felicidade também


Amo Alícia de paixão, é um ser humano incrível "cette cubaine"


Reproduzo aqui minha coluna de hoje, 11 de julho de 2008, no Terra Magazine porque Hanna e Alícia merecem muito mais...

Sexta, 11 de julho de 2008, 07h45 Atualizada às 08h01

Hanna Schygulla mistura talento, graça e carisma Reprodução

Deolinda Vilhena
De Paris


Conheci Hanna Schygulla em março de 2007 quando da sua ida a Porto Alegre para o lançamento da programação da 14ª edição do Porto Alegre Em Cena. Estava no hotel quando o Luciano Alabarse me telefonou perguntando se poderia ir ao encontro do Alexandre Magalhães e Silva na churrascaria Barranco para jantar em companhia de ninguém menos que Hanna Schygulla. Isso lá é convite que se recuse?

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» Fotos de Hanna Schygulla

Fui com o coração na mão. Afinal, como diz Olivier Bellamy, apresentador de um programa de rádio francês, "não se encontra Hanna Schygulla, a musa do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder sem uma certa emoção".

Longe da imagem de alguém impenetrável e econômica nas palavras que durante muitos anos tive dela, encontrei alguém que de cara se mostrou generosa, carinhosa e hoje digo ser impossível encontrá-la e não ser cativado por sua classe e sua delicadeza. E quando abre o sorriso? Aí tenho a impressão de que uma Deusa me abençoa.

Esse foi o primeiro dos vários encontros que teríamos ao longo dos três dias mais curtos da minha vida. Após o jantar fomos em busca de um bar com música brasileira ao vivo, numa noite de domingo em Poa...depois de algumas caipirinhas não mais existia cerimônia entre os membros do grupo que se havia formado, éramos todos amigos do jardim de infância. No dia seguinte o concerto, e eu que sempre tive problemas com a língua alemã, me vejo de babador na platéia do Theatro São Pedro...mais farra, mais caipirinha, um encontro final no Salgado Filho, ela parte para Buenos Aires eu para São Paulo, trocamos e-mails, endereços, descobrimos que somos quase vizinhas em Paris e já existe em mim uma nova saudade, que atende pelos nomes de Hanna Schygulla e Alícia Bustamante.

O tempo passa, o tempo voa e, de volta a Paris, mando um e-mail dizendo que cheguei e gostaria de vê-las, a resposta é rápida e vem com direito a uma ida a casa dela. Pois é isso que conto nessa coluna de hoje, meu encontro em Paris com Hanna Schygulla e Alícia Bustamante. O mais bonito presente da minha atual temporada parisiense.

A anti-estrela

Chego pontualmente na hora marcada e toco a campainha. Confesso que estou emocionada. Alícia abre as portas com aquele sorriso cubano tão próximo do nosso sorriso brasileiro. Hanna está terminando as cópias dos vídeos que quer me mostrar. Entro e me deslumbro com a beleza do lugar. Sinto no ar um clima familiar, penso imediatamente na casa de Tônia Carrero, casa com o astral mais alto que já conheci. Rimos muito, falamos besteiras e eis que ela chega. Linda, a pele clara, os olhos verdes-azuis com raios de ouro como diria alguém que eu conheço. Simplesmente vestida, sem maquiagem, a verdadeira antítese das estrelas pré-fabricadas.

Querem uma prova do quanto ela é a anti-star? Recentemente ela ganhou de presente um relógio cravejado de brilhantes, colocou à venda na Sotheby's e doou o dinheiro a uma instituição de caridade e disse claramente reconhecer que "é um belo presente mas eu não uso esse tipo de coisa".

Elementar meu caro Watson...Hanna possui a simplicidade do belo, é simples porque é bela e vice-versa, em sua vida não há lugar para a ostentação. Prova disso é seu loft parisiense, situado entre a Bastille e a Place de Vosges no côté mais chic do Marais, ao mesmo tempo espaçoso e caloroso. Livros, discos, filmes em fitas ou DVDs estão em todos os cantos...Bethânia e Omara Portuondo de um lado, o CD "Carioca" de Chico de outro e livros de artes em todos os lugares convivendo em perfeita harmonia. O lustre da sala de jantar guarda poemas e mensagens pessoais, assim como as paredes guardam as fotos da família.

Solteira e sem filhos, Hanna divide o espaço com a amiga Alícia Bustamante, atriz e diretora premiada, uma das grandes figuras do teatro, da televisão e do cinema cubano. Com mais de 20 filmes, entre os quais: "La muerte de un burocrata" de Gutierrez Alea, "Plaff" de Juan Carlos Tavio, "Cecilia" de Humberto Solas, "Vidas paralelas" de Pastor Vega, "El flechazo" de Orlando Rojas, "Adorables mentiras" de Gerardo Chijona e mais recentemente "Chili con Carne" de Thomas Gilou.

As duas se conheceram em Havana, em 1990, durante as filmagens de uma série para televisão escrita por Garcia Marquez e dirigida por Ruy Guerra: "Me alquilo para soñar". Nasceu ai uma amizade e uma grande cumplicidade profissional que começará a dar frutos em 1994 quando Alicia dirige Hanna no espetáculo "Entre deux mondes".

Durante oito anos ela será colaboradora de todos os espetáculos de Hanna: "Musical" de Stanley Walden; "Quel que soit le Songe", música de Jean-Marie Sénia, textos de Jean-Claude Carrière e Fassbinder, espetáculo aclamado no festival de Avignon e apresentado no Théâtre des Bouffes du Nord e no Théâtre de la Ville; "Moi et mon double" de Elfride Jelinek, criado no Théâtre des Amandiers de Nanterre; "Brecht ici et maintenant", na Cité de la Musique de Paris e espetáculo com o qual ela também esteve no Brasil; "Elle" (Louise Brook) cinema mudo em concerto, com música de Roberto Tricari e textos de Hanna, apresentado no teatro nacional de Chaillot. Em 2003, Alicia Bustamante dirige "Le Tango, Borges et moi" apresentado na Espanha, no Brasil, na Argentina e na Itália. Hanna por sua vez dirigiu Alícia no espetáculo "El Papelito" em abril de 2002 no México.

A mais recente criação de Alícia é uma deliciosa adaptação para o teatro, em francês, de "Dona Flor e seus dois maridos", com o título de "Flor de Bahia" com a atriz chilena Marcela Obregon e os músicos franceses Marcelo Milchberg e Brigitte Saïd. Conversando comigo ela aproveita para agradecer publicamente Paloma Amado que liberou os direitos da obra pelo amor e pela amizade que seu pai Jorge nutria por Cuba. Alícia gostaria muito de apresentar o espetáculo no Brasil, mais particularmente em Salvador, "seria uma maneira de homenagearmos Jorge Amado a quem a França tanto amou".

Uma conversa com as duas basta para que a convivência e a cumplicidade torne-se visível, por alguns momentos revivi minha cumplicidade com Angela Ro Ro - , minha amiga e madrinha do meu filho -algo que raras vezes acontece na vida das pessoas. Uma começa uma frase e a outra termina da maneira mais perfeita, os risos se sucedem...é um prazer para quem está por perto participar da brincadeira...Hanna e Alícia formam uma dupla imbatível...

Um verão entre o palco e os estúdios de cinema

Hanna nesse momento está envolvida em dois trabalhos: filma "Clara uma paixão francesa" para a televisão e viaja com "Par coeur", fruto do encontro da atriz-cantora com o diretor alemão Lukas Hemleb, e o escritor Jean-Claude Carrière, artista completo que transita entre cinema, teatro e literatura.

"Clara uma paixão francesa" é uma saga inspirada na vida da família Servan-Schreiber, fundadora da revista semanal francesa L'Express, um telefilme de 180 minutos a ser exibido no canal público France 2 na primavera de 2009.

Através do retrato de uma mulher, Clara, avó de Jean-Jacques, (fundador do L'Epress) e bisavó de David, o autor de "Guérir" o telefilme conta suas tentativas de se integrar com os seus à sociedade francesa desde a sua chegada da Prússia em 1879. A direção é de Sébastien Graal e a produção é de Fabienne Servan-Schreiber, tataraneta de Clara. As filmagens se estendem até o dia 25 de julho.

No teatro Hanna estreou no começo de junho, no Théâtre des Bouffes du Nord, leia-se Peter Brook, o espetáculo "Par Coeur", sutil "mélange" de teatro e música. Ela o define como uma "tragicomédia musical", ou como um canto que retraça os mistérios da memória humana, algo como uma noite comovente sobre as palavras que nos escapam, sobre as canções que assombram nossa memória, as recordações enterradas que reemergem de dentro de não sei que intervalo da memória. Uma viagem comovente e cheia de esperança pelos meandros da mente de uma mulher.

Jean-Claude Carrière diz que na verdade "o espetáculo é a história de uma mulher. Ela gostaria de contar algo, mas ela não pode: as palavras lhe fogem. Músicos chegam e então, desde que a música começa, ela reencontra a memória e canta. Como se a música lhe desse vida. Ela conta o que viu, uma noite, num palco. As canções que ela canta, uma outra as cantava, diz ela. Uma noite, uma única noite. Canções desconhecidas, novas, que falam de esperanças, de surpresas, de emoções de uma mulher. Mas esta mulher, quem é ela? Como é possível, que exatamente essa, que está diante de nós conheça as canções de cor?"

O espetáculo já esteve em Montpellier, no momento eles organizam a turnê que os levará a Luxembourg em novembro e, com um pouco de fé e sorte se apresentará no Brasil no final de outubro. Se entre os meus leitores existir alguém disposto a participar dessa aventura é só me escrever para o e-mail no pé da página.

Cheguei a Paris quando o espetáculo não mais estava em cartaz, a única coisa que odeio na França é essa doença de produzirem espetáculos que ficam em cartaz uma semana, mas ganhei de Hanna um DVD com o espetáculo, e ainda que ela tenha me recomendado vê-lo com olhos bem abertos porque filmar teatro é uma coisa complicada, fiquei encantada. Hanna está no seu esplendor. Comprendi imeditamente a frase de Jean-Claude Carrière que diz "quando Hanna se expressa, um langor eslavo irresistível balança o espaço ao redor dela. A isto chamamos graça."

As composições e os arranjos são de Étienne Perruchon e Hanna é acompanhada por Stéphan Oliva ao piano e Jean-Marc Foltz, no clarinete. Músicos da maior qualidade e com enorme experiência nas rodas de jazz. E Hanna que nunca estudou música, que não sabe ler partitura, e cuja primeira vez que cantou foi em "Lili Marlene", dirigido por Fassbinder em 1980, se orgulha do "ouvido apurado e da capacidade de identificar as notas certas pela intuição", diz ela que depois é só acrescentar uma boa dose de ensaios e ela está apta a cantar quase tudo. E cá para nós, a voz ajuda, porque falando ou cantando, tem uma rouquidão numa mistura exata de teatral com sensual...

A conversa está boa, o papo animado...começamos tomando um chá mágico, depois passamos à mesa para encarar sushis e sashimis preparados no seu restaurante japonês preferido, eu me contento com um iogurte de abacaxi 0%, e uma banana me espera...assim como uma surpresa, vamos ter direito a uma cerimônia de chá organizada por um "maître". Na verdade uma mulher, uma chinesa há quinze anos na França, seu nome Mo Cui Wei, dona de uma loja chamada "L'esprit du thé" em Strasbourg e que está em Paris na casa de Jean-Marc Foltz, músico de "Par coeur" que chega acompanhado por seu filho, Eliot...Experimentamos três tipos de chá...Eliot tomou mais de 20 pequenas xícaras, próprias para a degustação...Mo Cui Wei disse-nos que um dos chás purificava o corpo...mas purifiquei mesmo foi minha alma e isso quem fez não foi o chá, mas essa lenda viva que também atende pelo nome de Hanna...

Lembro-me que Hanna é um nome hebraico e busco o seu significado: cheia de graça. Descubro mais, reza a lenda que as pessoas que o recebem possuem uma determinação capaz de surpreender os que a cercam, são pessoas que têm a exigência como palavra de ordem...agora que conheço Hanna Schygulla confesso que dou razão ao que até então para mim era apenas folclore, crendice popular...

Para quem não conhece Hanna Schygulla...

Nascida dia 25 de dezembro de 1943, em plena segunda guerra mundial, na cidade de Katowice, então Alemanha e hoje Polônia, no ano em que os judeus são expulsos de Varsóvia. Parto complicado graças a uma injeção dada pelo médico que não gostaria de interromper suas comemorações de Natal. Anos depois Hanna descobre que este médico estava entre os que tinham feito experiências com Menghele em Auschwitz.

Hanna cresce sem a presença do pai e tem apenas dois anos e meio quando sua mãe tem que deixar Katowice, é o tempo dos deslocamentos das populações decidido pelos vencedores, deixam a cidade no último trem que parte em direção ao oeste e se instalam na Baviera, perto de Munique.

1946 marca a volta de seu pai "um homem quebrado que voltou com recordações do horror desta guerra cruel. Ter morrido ou estar vivo era algo que não fazia diferença para ele." Mas, ela, a pequena Hanna, queria viver e queria muito mais e para isso vai buscar companhia nos campos de ruínas e nos terrenos baldios onde as caravanas de circo se instalaram. É entre eles que ela faz amigos, na escola se sente diferente: a refugiada que veio do Oriente com um prenome hebraico...

Procura refúgio no seu mundo interior, em suas brincadeiras solitárias e em seus sonhos infantis, que serão atropelados por uma experiência traumática. Aos seis/sete anos sua escola organiza um espetáculo para as festas de Natal. Ela gostaria de interpretar o anjo. Para persuadir a professora de suas capacidades, ela dá uma cambalhota, a professora interpreta mal, julga o comportamento inadequado e a coloca de castigo. Vergonha total. A partir desse dia ela não terá mais vontade de chamar a atenção para si. O sonho de ser atriz, de dançar e cantar em público parece estar comprometido.

Ao terminar seus estudos ela não sabia bem o que fazer: "eu só sabia o que eu não queria. Eu não queria me casar, ter filhos, não queria levar uma vida pequeno-burguesa. Nem em criança brinquei com bonecas, nem em criança fiz de conta que era a noiva".

Aos 19 anos ela vem para Paris trabalhar como "fille au pair", na verdade queria ganhar tempo antes de escolher uma profissão. Volta para Munique e começa seus estudos de filologia, quer ser professora e assegurar a vida de seus pais. Mas pouco antes de apresentar sua tese, joga tudo fora, não quer se tornar uma intelectual, "nem perder a alegria de viver de tanto analisar e dissecar conceitos". A possibilidade de uma vida inteira dando aulas até a chegada da aposentadoria a assusta...ela abre mão de tudo.

Vai ser garçonete em um bar. Uma amiga a arrasta para um curso de teatro. Nos bancos desta mesma escola está Rainer Werner Fassbinder. Eles se falam pouco, mas se fascinam reciprocamente. Nem um nem dos dois termina a escola. Ele diz ter muito mais a fazer, tem a cabeça cheia de projetos, sonha refazer o mundo, e quer começar pelo teatro e pelo cinema.

Num dia de verão em 1968, Fassbinder bate a sua porta para lhe pedir que faça "Antígona", a atriz principal caí doente, é necessário substituí-la de imediato, a estréia está marcada para o dia seguinte. No "teatro de ação", que se transforma em "antiteatro" criado por Fassbinder no pátio de café de Munique, é necessário interpretar espontaneamente, sem muitos ensaios, tudo isso agrada a Hanna. "Eu interpretei como se estivesse em um sonho". Nascia ai a legendária dupla Fassbinder-Schygulla.

A festejada parceria com Fassbinder, tornou-os internacionalmente (re)conhecidos, e mesmo anos e anos passados Hanna tem consciência da importância dessa fase da sua vida: "nos três filmes que são retratos de Alemanha: 'Effi Briest', 'Lili Marlene' e 'O Casamento de Maria Braun', Fassbinder fez de mim a encarnação de Alemanha. E até hoje isso é como uma conta bancária que não se esvazia."

Sua relação com Fassbinder, entretanto, não a impediu de trabalhar com os diretores os mais diversos como Jean-Luc Godard ("Passion"), Ettore Scola ("Casanova e a Revolução"), Marco Ferreri ("A História de Piera", que lhe deu prêmio de melhor atriz em Cannes em 1983), Wim Wenders ("Movimento em Falso"), Andrzej Wajda ( "Um Amor na Alemanha") e Carlos Saura ("Antonieta").

Mais recentemente filmou "Terra Prometida" com Amos Gitaï e no momento está em cartaz nos cinemas brasileiros "Do outro lado" do cineasta alemão, de origem turca, Fatih Akin, Prêmio de Melhor Roteiro e Prêmio do Júri ecumênico em Cannes, em 2007. O filme gira em torno de três duplas familiares -um pai e filho turcos, uma mãe e filha alemãs e uma mãe e filha turcas -cujas vidas interagem enquanto a história se desloca entre um país e outro.

A presença de Hanna no filme foi elogiadíssima pelos críticos, um deles lembra que "contratualmente Hanna Schygulla é uma estrela convidada a fazer uma participação especial, nos créditos seu nome ocupa a sexta posição mas sua interpretação de uma mãe devastada pela morte da filha marca tanto ou mais que um papel principal, afinal Hanna estará sempre no alto da lista..."

Link http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3001884-EI11348,00.html

Deolinda Vilhena é jornalista, produtora, Doutora em Estudos teatrais pela Sorbonne, pós-doutoranda em Teatro na ECA/USP com bolsa da FAPESP.

Fale com Deolinda Vilhena: deolindavilhena@terra.com.br

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