Chico Carvalho é Peer Gynt
Foto: Divulgação
Cá estou em Paris, tentando manter atualizado um
blog que se chama Paris: uma festa para
poucos! e via Facebook – um viva às redes sociais – sou informada da
reestreia de Peer Gynt, poema
dramático de Ibsen, com direção, adaptação, cenários e figurinos – porque ele
não deixa por menos – do meu anjo-imperador Gabriel Villela.
Não precisou de mais nada para que, por umas horas,
eu decidisse esquecer Paris, afinal para saudar o teatro brasileiro de
qualidade não é crime, e muito menos pecado, falar de outra coisa que não seja
Paris nesse blog. Além do mais, estava me sentindo em dívida com Gabriel e com toda
a turma do espetáculo, afinal, não foi por acaso que saí de Salvador para ir a
São Paulo ver Peer Gynt. Assim como
não foi por acaso, a decisão de que Peer
Gynt seria a última peça vista no Brasil, antes desse meu ano de exílio,
mais do que voluntário, na Cidade Luz. Havia em mim uma necessidade vital de
sair do país em paz com o teatro brasileiro.
O que sei é que desde a tarde de domingo, 27 de
novembro, quando entendi que ando a chorar diante do belo, queria escrever
sobre o espetáculo. Rascunhei algumas linhas, mas a mudança marcada para uma
semana depois acabou atropelando meus planos. A vida quis que, apenas quase três
meses após ter me deliciado com as aventuras desse Macunaíma nórdico, eu
pudesse me sentar em Paris, depois de ter visto nesta terra cerca de vinte
espetáculos os mais diversos, para repensar e rever, nas minhas memórias
teatrais/afetivas, o espetáculo do Gabriel.
Foto João Caldas
Aproveito a ocasião para, mais uma vez, explicar
que NÃO SOU CRÍTICA DE TEATRO. Em maiúsculas, para não deixar dúvidas. Os meus
40 anos de teatro e a minha titulação acadêmica, estou em Paris fazendo meu
segundo pós-doutorado em Teatro, até me habilitariam a exercer a profissão sem
pagar mico, mas isso me obrigaria a ver teatro de uma outra maneira e eu só aprendi
a ver teatro de uma maneira: com o coração. Sou capaz de analisar cada uma das
ferramentas usadas na construção de um espetáculo, mas não tenho vontade. De um
espetáculo espero apenas que me toque, me emocione e seja bem feito,
bem-acabado, sem ranço de espetáculo de final de ano de escolinha infantil.
Gosto mesmo é de ser uma palpiteira com
conhecimento de causa. E com isso, sem precisar falar – escrever – de forma
rebuscada, simplesmente despertar nas pessoas a vontade de ir ao teatro. Nem
sempre aquilo que eu não gosto é ruim. Longe disso. O legal é poder fazer a
distinção entre o que eu gosto e o que tem qualidade, independente de eu gostar
ou não. A honestidade intelectual vem em primeiro lugar, sempre. Isso para mim está
intimamente ligado à ética e quem me conhece sabe da minha luta para que a
ética ocupe um espaço cada vez maior na sociedade antiética e imoral (ou seria
amoral?) em que vivemos.
Dito isso, a palpiteira vai ao site do SESI – SP,
para dar uma olhada no material de divulgação e checar as mudanças no elenco,
conferir horários etc., porque ela acredita em jornalista que faz dever de
casa, e constata feliz a quantidade de prêmios conquistados pelo Peer Gynt do Gabriel: Grande Prêmio da
Crítica da APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte; Prêmio São Paulo de
Incentivo ao Teatro Infantil e Jovem – categorias: Melhor Espetáculo Jovem,
Melhor Produção, Melhor Direção, Melhor Ator, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor
Trilha Adaptada e Melhor Figurino; Prêmio Aplauso Brasil 2016 na categoria
Melhor Figurino. A exceção de Peer Gynt
e GOD, do meu mais que amado amigo
Miguel Falabella, não vi nada da temporada paulista de 2016, a vida de
funcionária pública federal séria e cumpridora dos seus deveres me impediu de
estar mais vezes em São Paulo, logo, não posso julgar o que não vi. Mas, posso
dizer que Peer Gynt merece todos os
prêmios, um espetáculo com a grife Gabriel Villela é, sempre, um luxo em todos
os sentidos.
O anjo Gabriel atento aos detalhes
Foto: Divulgação
O teatro de Gabriel Villela por ser luxuoso e rico, me faz pensar que por vezes ele é mal avaliado. Tenho sempre a impressão de que ele caminha solitário pelo teatro brasileiro contemporâneo. o que me leva a pensar na situação vivida por Patrice Chéreau. Depois de anos instalado em Milão, a convite de Roger Planchon, ele volta para a França e se instala no Théâtre National Populaire de Villeurbanne, região suburbana de Lyon. Na França pós-maio de 68, as discussões sobre a concepção de teatro popular estavam na crista da onda, usando linguagem da época, os debates franco-franceses, como sempre, acirrados e Chéreau chega sem medo de defender as mudanças que busca e se coloca como um dos nomes da renovação. Ele sabia que a beleza tem um preço e nunca se recusou a pagar por ele, por falar em Chéreau ele também montou um Peer Gynt, versão integral, sete horas de duração, com 23 atores em cena e com Maria Casarès no papel da mãe do herói e Gérard Desarthe no papel de título, até hoje considerado como um dos seus mais belos espetáculos.
O teatro de Gabriel Villela por ser luxuoso e rico, me faz pensar que por vezes ele é mal avaliado. Tenho sempre a impressão de que ele caminha solitário pelo teatro brasileiro contemporâneo. o que me leva a pensar na situação vivida por Patrice Chéreau. Depois de anos instalado em Milão, a convite de Roger Planchon, ele volta para a França e se instala no Théâtre National Populaire de Villeurbanne, região suburbana de Lyon. Na França pós-maio de 68, as discussões sobre a concepção de teatro popular estavam na crista da onda, usando linguagem da época, os debates franco-franceses, como sempre, acirrados e Chéreau chega sem medo de defender as mudanças que busca e se coloca como um dos nomes da renovação. Ele sabia que a beleza tem um preço e nunca se recusou a pagar por ele, por falar em Chéreau ele também montou um Peer Gynt, versão integral, sete horas de duração, com 23 atores em cena e com Maria Casarès no papel da mãe do herói e Gérard Desarthe no papel de título, até hoje considerado como um dos seus mais belos espetáculos.
Há uma frase de um grande nome da cena internacional, mas particularmente da cena francesa, Antoine Vitez: “teatro popular é o teatro elitista para todos”. Uso essa frase sempre que preciso explicar que teatro popular não precisa ser a corrida em busca de um teatro pobre – não estou fazendo alusão a Grotowski – e muito menos ter acabamento de escola de samba do grupo de acesso de cidade do interior. Os espetáculos de Gabriel são, para mim, a síntese perfeita da frase de Antoine Vitez.
A beleza visual dos espetáculos de Gabriel é tão impactante que, ao longo dos anos, venho notando que as pessoas não observam um lado dele tão forte quanto esse das visualidades – Eduardo Tudella olhe eu aqui pensando em você – da cena: a do diretor de ator. Costumo dizer que grandes diretores de espetáculo não são bons diretores de atores – há exceções – como se o cuidado com o todo os afastasse dos detalhes de preparação de ator. Mas aí vem Gabriel, e como Gabriel prepara bem esses atores.
Foto: João Caldas
Essa preparação se faz sentir nas “cenas de
comparsaria”, como diria minha Bi amada, verdadeiro deleite. Existe a noção de
conjunto, de “ensemble” como dizem os franceses. E claro, há os destaques, em
especial Chico Carvalho que descobri em A
Tempestade montada por Gabriel em 2015. Lembro-me, como se fosse hoje, das
inúmeras vezes que Bibi (sim Bibi Ferreira foi comigo ao teatro ver A Tempestade do Gabriel, somos fãs de carteirinha
dele) apertava com força as minhas mãos, dizendo “que ator”! Não posso deixar
de citar Maria do Carmo Soares, no papel da mãe de Peer. Que força em cena, que
presença mágica, os minutos iniciais, as primeiras palavras são suficientes, o
recado está dado: há uma ATRIZ no palco.
Nesse mesmo tópico há algo importantíssimo: os
atores de Gabriel Villela falam bem, articulam corretamente, e pasmem vocês,
fazem um musical sem usar microfones. Demorei uns quinze minutos na plateia
para crer que as vozes que eu ouvia eram de verdade e não estavam distorcidas
por um microfone. No final do espetáculo, acho que foi a primeira coisa que
disse a Gabriel, ainda no foyer do teatro: seu espetáculo não é microfonado!
Que felicidade para quem há cinco anos e meio convive com espetáculos montados –
aos gritos – em salas que oscilam entre 50 e 250 lugares com atores com
microfone, produções sem muitos recursos financeiros gastando dinheiro em
microfones no lugar de chamar um preparador vocal que coloque aprendizes e
profissionais em condição de falar. Não, não é por acaso que no programa –
belíssimo, como toda a programação visual – está lá o nome de Babaya como preparadora
vocal e diretora de texto, Babaya arrasa. E de quebra, a direção musical de
Marco França, ele mesmo em cena quando vi o espetáculo. Impossível não pensar
numa oficina do Jean-Jacques Lemêtre em Salvador, em 2013 creio eu, em que
recebi a ficha de inscrição de Marco França. A delicadeza e a humildade em
pessoa, saindo de Natal, deixando os Clowns de Shakesperare por uns dias para
buscar o encontro com um mestre na sua área de atuação. Pouco tempo depois, ele é um
mestre.
A inesquecível cena da morte da mãe de Peer Gynt
Foto: João Caldas
O Peer Gynt do
Ibsen é muito fácil saber o que é, um google básico resolve, mas o Peer Gynt do Gabriel é muito mais do
que a busca do homem ou a procura de si mesmo, e você precisa ir até o teatro
para descobrir. Amo textos que dão ao diretor condições de sonhar alto, de
correr riscos, de se aventurar por mundos os mais diversos, em que ele pode ir
além dele mesmo, Gabriel não perde a deixa, aproveita a dimensão épica do texto,
reforçando a teatralidade do espetáculo sem esquecer que não se trata apenas de
um poema dramático, mas antes de tudo de um espetáculo de teatro. E ai Gabriel
excede.
Abro espaço no textão – lê até o final quem quer –
para falar de uma cena em especial, a mais bela e tocante de todas, que fez dos
meus olhos brotarem cachoeiras, sobre a qual eu seria incapaz de dizer algo mais
perfeito do que meu colega e amigo querido, Dib Carneiro Neto em seu site Pecinha é a vovozinha e faço minhas as
palavras dele:
“a cena mais linda da peça, em minha opinião, está, de novo, relacionada à figura da mãe do personagem principal. Arrisco dizer que nunca vi no teatro cena mais acertada sobre o momento da morte de uma personagem. O filho, feito uma Sherazade do folclore norueguês, conta histórias de reis e castelos para a mãe morrer feliz e em estado de encantamento. A eternidade sendo alcançada pela via desobstruída da mais pura imaginação. O casamento do texto tocante de Ibsen com a direção poética de Gabriel Villela resulta na mais bela reverência ao mundo das fábulas que já vi em cena.
“Está pronta, mamãezinha?”, pergunta Peer, entre
uma e outra frase de seu ‘reconto’ fantástico e etéreo. “São Pedro, agora deixe
ela entrar aí sossegadinha no meio dessa gente boa!”, pede o filho ao porteiro
do céu. E o diretor Villela acentua o afeto da cena com o uso de adereços da
ordem quimérica de quem sabe ser sublime para alcançar o celestial: um buquê de
flores artesanais coloridas, inspirado na celebração mexicana do dia dos
mortos, e uma expressiva máscara indígena da região amazônica. Não bastasse a força simbólica desses
adereços sincréticos – sempre um trunfo especial na carreira do imaginativo
diretor – e ele ainda arremata a grande cena com o elenco interpretando divinamente
a canção Lapinha, de Baden Powell e
Paulo César Pinheiro, em respeitosa formação de bloco de carnaval de
antigamente. É ver para crer: ápice antológico e inesquecível, para marcar
época nesse palco histórico da Avenida Paulista (...)”.
Para quem perdeu a figura materna duas vezes, em
1981 com a morte de Clara Nunes; em 2002 com a morte da minha mãe, Almerinda, e
em ambas as vezes estava ausente, por caprichos da vida, essa cena substitui o
luto que não foi feito, pois não pude estar nas despedidas, não participei do ritual
final. E confesso: quando o elenco começou a cantar Lapinha – o Paulo César
Pinheiro é viúvo da Clara – controlei os soluços, mas não consegui conter as
lágrimas. Teatro bom para mim é esse: o que me faz sentir viva e me permite
sair do teatro melhor do que entrei. E isso esse “caipira-mineiro-barroco-universal”,
na perfeita definição do Dib, chamado Gabriel Villela tem feito comigo com
frequência, está explicado porque sempre digo que ele é meu diretor preferido?
São quase duas da manhã em Paris, em São Paulo eles
devem estar deixando o teatro do SESI depois da reestreia, e eu coloco aqui o ponto
final na minha declaração de amor a um Imperador travestido de Anjo, entenderam
porque eu não posso fazer críticas? Um crítico não pode fazer declaração de
amor, uma palpiteira pode...
SERVIÇO PEER GYNT
Autor: Henrik Ibsen
Direção, adaptação, cenografia e figurinos: Gabriel
Villela
Direção Musical: Babaya e Marco França
Preparação vocal e Direção de Texto: Babaya
Direção de Produção: Claudio Fontana
Elenco: Chico Carvalho, Cacá Toledo, Danila Cury,
Daniel Maia, Daniel Mazzarolo, Helô Cintra, Jonatan Harold, Letícia Medella,
Leonrado Ventura, Luciana Ramanzini, Marco Furlan, Mariana Elisabetsky, Maria
do Carmo Soares, Romis Ferreira e Rogério Romera.
Quando? De 22 de fevereiro a 19 de março
Horários: Quarta a Sábado às 20h / Domingo às 19h
Onde: Teatro do SESI-SP – Centro Cultural FIESP –
Ruth Cardoso
Avenida Paulista, 1313, Cerqueira César, São Paulo
Em frente à estação Trianon-Masp do metrô
Informações: Telefone: (11) 3146-7405
Classificação: recomendado para maiores de 14 anos
Duração: 110 minutos