samedi 6 février 2010

Huppert pegou o bonde errado...

Os aplausos depois da ameaça de vaia
Foto Deolinda Vilhena
O diretor demorou a entrar em cena temendo atiçar as vaias
Foto Deolinda Vilhena

Isabelle Huppert como sempre divina
Foto Deolinda Vilhena
Tudo o que tinha a dizer sobre o equivocado Bonde de Warlikowski fiz na minha coluna do Terra magazine, é só clicar no título para ler no Terra ou ler aqui embaixo...

O bonde-cafarnaum de Krzysztof WarlikowskiDeolinda Vilhena
De Paris

Há muitos anos conheço Um Bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, tantos que me perdi nas contas. Antes mesmo de ler o livro, vi o filme de Elia Kazan, e guardei na memória um Marlon Brando deslumbrantemente deslumbrante, em todos os sentidos disponíveis no dicionário no papel de Stanley, o operário de origem polonesa casado com Stella, irmã de Blanche Dubois - a heroína - cuja solidão misturada a seus sonhos traídos e seu desespero só será confessada e encarada, quando, após anos de separação e encontrando-se numa sinuca de bico, sem ter para onde ir, ela vai buscar abrigo na casa da irmã, num bairro popular de Nova Orléans, no final de uma linha de bonde chamada Desejo. Pode-se dizer que Um bonde chamado desejo é uma tragédia sem morte, mas quem disse que é preciso morrer para estar morto?

Assim que soube da montagem de Krzysztof Warlikowski, que trazia Isabelle Huppert no papel de Blanche Dubois, na temporada 2009/2010 do Odéon garanti meu ingresso para a estréia.

Fã de carteirinha da frieza ímpar dessa atriz a quem vi em Hedda Gabler, de Ibsen, Quartett, de Heiner Muller, e Le Dieu du carnage, de Yasmina Reza, me empolguei com a oportunidade de vê-la num clássico, coisa tão em desuso nos palcos brasileiros. Faço parte da turma que acredita no prazer de reencontrar em cena um grande autor.

O encontro de Isabelle Huppert e Krzysztof Warlikowski, o mais esperado da temporada parisiense de 2009/2010, dizem por aqui que era uma questão de tempo. Conhecida como uma das mais audaciosas atrizes de sua geração, sempre ávida por encontros apaixonantes e experiências que desafiem os seus limites e sacudam os seus hábitos. Logo, sua ligação com o enfant terrible do teatro polonês, parecia inevitável.

Reza a lenda que foi após a estréia de Dibbouk, em Paris, que Huppert e Warlikowski se encontraram. Depois disso, ela teria assistido a todos os seus espetáculos. Conversa vai, conversa vem ela conta ao diretor que há muito sonha com Blanche Dubois, e ele confessa estar há mais de dois anos mergulhado no universo de Tennessee Williams, sem uma idéia especial sobre o que fazer. A idéia de montar O Bonde surgiu de maneira incontornável.

Toda essa expectativa levava a crer que a montagem de Krzysztof Warlikowski estava fadada ao sucesso. Afinal o currículo desse polonês não é desprezível. Formado em história e filosofia na universidade Jagellonia em Cracóvia, estudou história do teatro na École Pratique des Hautes Études de Paris, formou-se em direção na Academia de Teatro de Cracóvia, foi assistente de Peter Brook em Impressions de Pelléas e teve em Giorgio Strehler o supervisor de seu trabalho de adaptação e encenação de À la recherche du temps perdu, de Proust, no Piccolo Teatro de Milão.

Entre 1994 e 2003 ele monta sete peças de Shakespeare: O mercador de Veneza, Hamlet, Conto de inverno, A Megera domada, Noite de reis, A Tempestade, Sonho de uma noite de verão, sem deixar de visitar os gregos e os contemporâneos Kafka (O Processo), Koltès (Roberto Zucco e Quai Ouest, 1998) e Sarah Kane (Purifiés).

Enveredou, com sucesso, pelo mundo da ópera, destino de todos os grandes diretores, e assinou a encenação, entre outras, de Don Carlos, de Verdi, Iphigénie en Tauride, de Gluck, Parsifal, de Richard Wagner, e Médée, de Cherubini.

Além disso, Un Tramway tem uma temporada parisiense atípica: dois meses, contra uma média de três ou quatro semanas. E uma agenda de turnê invejável, que começará pela Polônia, terra natal de Warlikowski.

Em cena a distribuição de elenco também seduzia. Ao lado de Isabelle Huppert, no papel de Stanley, o ator polonês Andrzej Chyra, que participa de todos os espetáculos do diretor desde 2001 e acaba de filmar Katyn, mais recente filme de Andrzej Wajda, sobre o massacre de soldados poloneses cometido pelos russos em 1940. E as presenças de Florence Tomassin, Renate Jett - austríaca e integrante da turma de Warlikowski -, o chileno Cristian Soto, e o francês Yann Collette.

Outro detalhe me chamou a atenção: a tradução de Wajdi Mouwad, afinal na França a peça já tinha sido adaptada por ninguém menos que Jean Cocteau. Warlikowski decidiu pedir uma nova tradução a Mouawad, alegando que "não gostaria de estar cercado de franceses". Solução ideal: um francófono, nascido no Líbano, radicado no Quebec. Optaram por uma adaptação centrada na personagem de Blanche, que segundo eles "radicaliza e moderniza a narração usando uma língua direta".

Em recente entrevista Warlikowski disse que com Mouawad, eles escreveram para Blanche, monólogos filmados e projetados sobre o palco, que falam da vida de uma mulher que terminará seus dias num hospital psiquiátrico. Pergunta que não quer calar: porque escolher um texto e depois mutilá-lo? Por que não escreve o seu próprio texto? Por que não faz uma criação coletiva ou colaborativa para ser mais ao gosto do Tó?

Mesmo com essas perguntam que insistiam em me incomodar, lá fui eu conferir a estréia. Dividindo a platéia com a elite da elite francesa, cultural, jornalística, intelectual... De Jane Birkin e Stéphane Braunschweig a Jean Daniel - fundador e diretor do Nouvel Observateur, das atrizes Nicole Garcia e Sabine Azéma, passando por Renaud Donnedieu de Vabres, ex-ministro da Cultura e Olivier Poivre d'Arvor, diretor de CulturesFrance, pelos críticos Jean-Pierre Thibaudat, ex-Libération e atual Rue 89 e Armelle Héliot, do Le Figaro e por acadêmicos como Monique Banu-Borie.

Ao ler o programa e com alguns minutos de espetáculo (e de tédio!), entendi porque a montagem Warlikowski chama-se apenas Um Bonde...

Questões jurídicas impediram que a produção utilizasse o nome completo da peça, Um Bonde chamado desejo, pois os herdeiros de Tennessee Williams exigem que o texto seja respeitado na íntegra. Com o que não concorda Warlikowski. Em entrevista concedida a Brigitte Salino, do jornal Le Monde, dias antes da estréia ele dava demonstração de sua arrogância ao afirmar: "esta proteção é absurda e inadmissível. Quando se monta Shakespeare, você pode fazer o que você quiser. No teatro, uma peça faz parte de um todo. Cada um dá a sua visão. Quando eu monto Um Bonde, eu não falo de Williams. Eu falo de mim". Burra eu que não percebi aí o perigo.

Afinal, é preciso estar atento - e forte! como diz a canção - quando um homem de teatro, um criador, considera o direito moral de autor, que é passível de transferência aos seus herdeiros, uma proteção absurda. Deve haver algo de podre a se considerar no reino do polaco em questão...

O espetáculo é chato. É velho querendo ser novo. Parece um patchwork de tudo o que Warlikowski aprendeu na vida e não foi capaz de triar e dominar. Resta o visual.

O fosso da orquestra foi fechado, aumentando assim o espaço dedicado à representação, o cenário, diga-se de passagem MAGNÍFICO, criado pela companheira de estrada de Warlikowski, Malgorzata Szczesniak, juntos eles já fizeram cerca de 50 espetáculos, é um imenso boliche cortado de um lado ao outro por um corredor de vidro móvel,com paredes transparentes e telões para imagens projetadas ao vivo. No qual podemos ver Isabelle Huppert, de short e camisetinha de cetim preto, trancada no banheiro, cantando/chorando, Follow me, de Amanda Lear, enquanto seu rosto ocupa a tela posterior, filmado ao vivo.

Isabelle Huppert é vestida pela Maison Yves Saint Laurent e pela Maison Christian Dior, desfile de modas garantido que agradaria minha amiga Iesa Rodrigues. Luxo e requinte numa produção orçada em 600 mil euros - cerca de um milhão e meio de reais - graças a um pool de parceiros: Odéon-Théâtre de l'Europe, Nowy Teatr de Varsóvia, Grand Théâtre de Luxembourg, Holland Festival - Amsterdam, Comédie de Genève, Emilia Romagna Teatro Fondazione, Berliner Festspiele, MC2 Grenoble. Muito barulho por nada.

Mas, a melhor cena do espetáculo veio da platéia, faltava pouco para o final, durante uma cantoria incansável - várias delas atravessaram o espetáculo - alguém gritou em alto e bom som: "PITIÉÉÉÉ"...

Que em bom português quer dizer "piedade". Piedade daquela platéia que passou quase três horas num cafarnaum sem razão aparente de ser.

Quando baixou o pano vi, pela primeira vez em 15 anos no circuito parisiense, o público ensaiar uma bela vaia, que não seria novidade para Warlikowski. Em 2006, com Iphigénie en Tauride, de Gluck, na Ópera da Bastilha ele foi apresentado à ira do público parisiense - que não hesita em vaiar um espetáculo que não o agrada.

Mas se há um país que respeita e reconhece seus valores mesmo quando eles vacilam, esse país é a França. Imediatamente, outra parte da platéia respondeu com uma imensa salva de palma, aplaudindo não o diretor e sua encenação desastrada, mas Mademoiselle Huppert (adoro essa maneira francesa de se referir eternamente como Mademoiselle às suas atrizes, diz-se, por exemplo, Mademoiselle Moreau para Jeanne Moreau, portanto uma senhora de 82 anos) pela bela prestação de Blanche no bonde equivocado de Warlikowski e pelos imensos serviços prestados ao teatro e ao cinema francês em toda a sua carreira. Aplausos que se estendiam aos outros atores, vítimas de um diretor que sofre da síndrome do "se achismo".

Como se não bastasse o fiasco do espetáculo em cena, Warlikowski ofereceu outro ao público. Sentado numa poltrona, exatamente na fila atrás da minha, tendo como companhia seus asseclas, ele irrompia em gargalhadas em vários momentos da peça, momentos de puro private joke que os faziam rir a ponto de incomodar quem pagou para ver o espetáculo. Além de tudo, mal educado.

Un tramway é desses espetáculos dos quais a gente sai triste pelo desperdício de talento e last but not least de dinheiro, e nesse caso público. Mais grave ainda, num momento em que as políticas públicas na área da cultura são atacadas por todos os lados. E espetáculos como esse podem tornar-se álibis poderosos dos poderosos.

P.S. 1 - Estou um pouco decepcionada com o Olivier Py, diretor do Odéon Théâtre de l'Europe. É a oitava vez que vou ao teatro depois que ele assumiu a direção e jamais o vi por lá. O que é feito do senhor do lugar? Entretanto, fui duas vezes ao La Colline e nas duas encontrei o Stéphane Braunschweig. Será que ele também vai entrar na turma dos que se acham? Hou la la!!!

P.S. 2 - Dentro da série Rencontre au bord du plateau (Encontro à beira do palco), no domingo dia 14, a equipe artística conversará com o público após o espetáculo. Infelizmente ainda não podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo e resolvi comemorar a Saint-Valentin, dia dos namorados no hemisfério norte, revendo A Coroação de Popéia, em Clamart, o que me impede de estar nesse bate-papo para fazer algumas perguntas básicas a esse enfant terrible, mais terrível que criança propriamente dita. Tentarei mandar um assistente.

SERVIÇO UN TRAMWAY:


Direção: Krzysztof Warlikowski
Elenco: Isabelle Huppert, Andrzej Chyra, Florence Thomassin, Yann Collette, Renate Jett, Cristián Soto
Texto francês: Wajdi Mouawad
Adaptação: Krzysztof Warlikowski
Colaboração à adaptação: Piotr Gruszczynski & Wajdi Mouawad
Dramaturgo: Piotr Gruszczynski
Cenários e figurinos: Malgorzata Szczesniak
Iluminação: Felice Ross
Música: Pawel Mykietyn
Perucas e Maquiagem: Luc Verschueren
Vídeo: Denis Guéguin
Som: Jean-Louis Imbert
Quando: Até 3 de abril
Horários - de 3ª a sábado às 20h, e aos domingos às 15h
Preços: de 10 a 32 euros (entre 25 e 80 reais)
Onde: Odéon Théâtre de l'Europe - Place de l'Odéon, Paris-6e
Duração: 2h40 sem intervalo

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