jeudi 23 février 2017

O teatro necessário de Gabriel Villela

Chico Carvalho é Peer Gynt 
Foto: Divulgação
Cá estou em Paris, tentando manter atualizado um blog que se chama Paris: uma festa para poucos! e via Facebook – um viva às redes sociais – sou informada da reestreia de Peer Gynt, poema dramático de Ibsen, com direção, adaptação, cenários e figurinos – porque ele não deixa por menos – do meu anjo-imperador Gabriel Villela.

Não precisou de mais nada para que, por umas horas, eu decidisse esquecer Paris, afinal para saudar o teatro brasileiro de qualidade não é crime, e muito menos pecado, falar de outra coisa que não seja Paris nesse blog. Além do mais, estava me sentindo em dívida com Gabriel e com toda a turma do espetáculo, afinal, não foi por acaso que saí de Salvador para ir a São Paulo ver Peer Gynt. Assim como não foi por acaso, a decisão de que Peer Gynt seria a última peça vista no Brasil, antes desse meu ano de exílio, mais do que voluntário, na Cidade Luz. Havia em mim uma necessidade vital de sair do país em paz com o teatro brasileiro.
O que sei é que desde a tarde de domingo, 27 de novembro, quando entendi que ando a chorar diante do belo, queria escrever sobre o espetáculo. Rascunhei algumas linhas, mas a mudança marcada para uma semana depois acabou atropelando meus planos. A vida quis que, apenas quase três meses após ter me deliciado com as aventuras desse Macunaíma nórdico, eu pudesse me sentar em Paris, depois de ter visto nesta terra cerca de vinte espetáculos os mais diversos, para repensar e rever, nas minhas memórias teatrais/afetivas, o espetáculo do Gabriel.

Foto João Caldas
Aproveito a ocasião para, mais uma vez, explicar que NÃO SOU CRÍTICA DE TEATRO. Em maiúsculas, para não deixar dúvidas. Os meus 40 anos de teatro e a minha titulação acadêmica, estou em Paris fazendo meu segundo pós-doutorado em Teatro, até me habilitariam a exercer a profissão sem pagar mico, mas isso me obrigaria a ver teatro de uma outra maneira e eu só aprendi a ver teatro de uma maneira: com o coração. Sou capaz de analisar cada uma das ferramentas usadas na construção de um espetáculo, mas não tenho vontade. De um espetáculo espero apenas que me toque, me emocione e seja bem feito, bem-acabado, sem ranço de espetáculo de final de ano de escolinha infantil.
Gosto mesmo é de ser uma palpiteira com conhecimento de causa. E com isso, sem precisar falar – escrever – de forma rebuscada, simplesmente despertar nas pessoas a vontade de ir ao teatro. Nem sempre aquilo que eu não gosto é ruim. Longe disso. O legal é poder fazer a distinção entre o que eu gosto e o que tem qualidade, independente de eu gostar ou não. A honestidade intelectual vem em primeiro lugar, sempre. Isso para mim está intimamente ligado à ética e quem me conhece sabe da minha luta para que a ética ocupe um espaço cada vez maior na sociedade antiética e imoral (ou seria amoral?) em que vivemos.
Dito isso, a palpiteira vai ao site do SESI – SP, para dar uma olhada no material de divulgação e checar as mudanças no elenco, conferir horários etc., porque ela acredita em jornalista que faz dever de casa, e constata feliz a quantidade de prêmios conquistados pelo Peer Gynt do Gabriel: Grande Prêmio da Crítica da APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte; Prêmio São Paulo de Incentivo ao Teatro Infantil e Jovem – categorias: Melhor Espetáculo Jovem, Melhor Produção, Melhor Direção, Melhor Ator, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Trilha Adaptada e Melhor Figurino; Prêmio Aplauso Brasil 2016 na categoria Melhor Figurino. A exceção de Peer Gynt e GOD, do meu mais que amado amigo Miguel Falabella, não vi nada da temporada paulista de 2016, a vida de funcionária pública federal séria e cumpridora dos seus deveres me impediu de estar mais vezes em São Paulo, logo, não posso julgar o que não vi. Mas, posso dizer que Peer Gynt merece todos os prêmios, um espetáculo com a grife Gabriel Villela é, sempre, um luxo em todos os sentidos.

O anjo Gabriel atento aos detalhes
Foto: Divulgação

O teatro de Gabriel Villela por ser luxuoso e rico, me faz pensar que por vezes ele é mal avaliado. Tenho sempre a impressão de que ele caminha solitário pelo teatro brasileiro contemporâneo. o que me leva a pensar na situação vivida por Patrice Chéreau. Depois de anos instalado em Milão, a convite de Roger Planchon, ele volta para a França e se instala no Théâtre National Populaire de Villeurbanne, região suburbana de Lyon. Na França pós-maio de 68, as discussões sobre a concepção de teatro popular estavam na crista da onda, usando linguagem da época, os debates franco-franceses, como sempre, acirrados e Chéreau chega sem medo de defender as mudanças que busca e se coloca como um dos nomes da renovação. Ele sabia que a beleza tem um preço e nunca se recusou a pagar por ele, por falar em Chéreau ele também montou um Peer Gynt, versão integral, sete horas de duração, com 23 atores em cena e com Maria Casarès no papel da mãe do herói e Gérard Desarthe no papel de título, até hoje considerado como um dos seus mais belos espetáculos.
Há uma frase de um grande nome da cena internacional, mas particularmente da cena francesa, Antoine Vitez: “teatro popular é o teatro elitista para todos”. Uso essa frase sempre que preciso explicar que teatro popular não precisa ser a corrida em busca de um teatro pobre – não estou fazendo alusão a Grotowski – e muito menos ter acabamento de escola de samba do grupo de acesso de cidade do interior. Os espetáculos de Gabriel são, para mim, a síntese perfeita da frase de Antoine Vitez.
A beleza visual dos espetáculos de Gabriel é tão impactante que, ao longo dos anos, venho notando que as pessoas não observam um lado dele tão forte quanto esse das visualidades – Eduardo Tudella olhe eu aqui pensando em você – da cena: a do diretor de ator. Costumo dizer que grandes diretores de espetáculo não são bons diretores de atores – há exceções – como se o cuidado com o todo os afastasse dos detalhes de preparação de ator. Mas aí vem Gabriel, e como Gabriel prepara bem esses atores.

Foto: João Caldas

Essa preparação se faz sentir nas “cenas de comparsaria”, como diria minha Bi amada, verdadeiro deleite. Existe a noção de conjunto, de “ensemble” como dizem os franceses. E claro, há os destaques, em especial Chico Carvalho que descobri em A Tempestade montada por Gabriel em 2015. Lembro-me, como se fosse hoje, das inúmeras vezes que Bibi (sim Bibi Ferreira foi comigo ao teatro ver A Tempestade do Gabriel, somos fãs de carteirinha dele) apertava com força as minhas mãos, dizendo “que ator”! Não posso deixar de citar Maria do Carmo Soares, no papel da mãe de Peer. Que força em cena, que presença mágica, os minutos iniciais, as primeiras palavras são suficientes, o recado está dado: há uma ATRIZ no palco.
Nesse mesmo tópico há algo importantíssimo: os atores de Gabriel Villela falam bem, articulam corretamente, e pasmem vocês, fazem um musical sem usar microfones. Demorei uns quinze minutos na plateia para crer que as vozes que eu ouvia eram de verdade e não estavam distorcidas por um microfone. No final do espetáculo, acho que foi a primeira coisa que disse a Gabriel, ainda no foyer do teatro: seu espetáculo não é microfonado! Que felicidade para quem há cinco anos e meio convive com espetáculos montados – aos gritos – em salas que oscilam entre 50 e 250 lugares com atores com microfone, produções sem muitos recursos financeiros gastando dinheiro em microfones no lugar de chamar um preparador vocal que coloque aprendizes e profissionais em condição de falar. Não, não é por acaso que no programa – belíssimo, como toda a programação visual – está lá o nome de Babaya como preparadora vocal e diretora de texto, Babaya arrasa. E de quebra, a direção musical de Marco França, ele mesmo em cena quando vi o espetáculo. Impossível não pensar numa oficina do Jean-Jacques Lemêtre em Salvador, em 2013 creio eu, em que recebi a ficha de inscrição de Marco França. A delicadeza e a humildade em pessoa, saindo de Natal, deixando os Clowns de Shakesperare por uns dias para buscar o encontro com um mestre na sua área de atuação. Pouco tempo depois, ele é um mestre. 

A inesquecível cena da morte da mãe de Peer Gynt
Foto: João Caldas

O Peer Gynt do Ibsen é muito fácil saber o que é, um google básico resolve, mas o Peer Gynt do Gabriel é muito mais do que a busca do homem ou a procura de si mesmo, e você precisa ir até o teatro para descobrir. Amo textos que dão ao diretor condições de sonhar alto, de correr riscos, de se aventurar por mundos os mais diversos, em que ele pode ir além dele mesmo, Gabriel não perde a deixa, aproveita a dimensão épica do texto, reforçando a teatralidade do espetáculo sem esquecer que não se trata apenas de um poema dramático, mas antes de tudo de um espetáculo de teatro. E ai Gabriel excede.

Abro espaço no textão – lê até o final quem quer – para falar de uma cena em especial, a mais bela e tocante de todas, que fez dos meus olhos brotarem cachoeiras, sobre a qual eu seria incapaz de dizer algo mais perfeito do que meu colega e amigo querido, Dib Carneiro Neto em seu site Pecinha é a vovozinha e faço minhas as palavras dele:

“a cena mais linda da peça, em minha opinião, está, de novo, relacionada à figura da mãe do personagem principal. Arrisco dizer que nunca vi no teatro cena mais acertada sobre o momento da morte de uma personagem. O filho, feito uma Sherazade do folclore norueguês, conta histórias de reis e castelos para a mãe morrer feliz e em estado de encantamento. A eternidade sendo alcançada pela via desobstruída da mais pura imaginação. O casamento do texto tocante de Ibsen com a direção poética de Gabriel Villela resulta na mais bela reverência ao mundo das fábulas que já vi em cena.
“Está pronta, mamãezinha?”, pergunta Peer, entre uma e outra frase de seu ‘reconto’ fantástico e etéreo. “São Pedro, agora deixe ela entrar aí sossegadinha no meio dessa gente boa!”, pede o filho ao porteiro do céu. E o diretor Villela acentua o afeto da cena com o uso de adereços da ordem quimérica de quem sabe ser sublime para alcançar o celestial: um buquê de flores artesanais coloridas, inspirado na celebração mexicana do dia dos mortos, e uma expressiva máscara indígena da região amazônica.  Não bastasse a força simbólica desses adereços sincréticos – sempre um trunfo especial na carreira do imaginativo diretor – e ele ainda arremata a grande cena com o elenco interpretando divinamente a canção Lapinha, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, em respeitosa formação de bloco de carnaval de antigamente. É ver para crer: ápice antológico e inesquecível, para marcar época nesse palco histórico da Avenida Paulista (...)”.
Para quem perdeu a figura materna duas vezes, em 1981 com a morte de Clara Nunes; em 2002 com a morte da minha mãe, Almerinda, e em ambas as vezes estava ausente, por caprichos da vida, essa cena substitui o luto que não foi feito, pois não pude estar nas despedidas, não participei do ritual final. E confesso: quando o elenco começou a cantar Lapinha – o Paulo César Pinheiro é viúvo da Clara – controlei os soluços, mas não consegui conter as lágrimas. Teatro bom para mim é esse: o que me faz sentir viva e me permite sair do teatro melhor do que entrei. E isso esse “caipira-mineiro-barroco-universal”, na perfeita definição do Dib, chamado Gabriel Villela tem feito comigo com frequência, está explicado porque sempre digo que ele é meu diretor preferido?
São quase duas da manhã em Paris, em São Paulo eles devem estar deixando o teatro do SESI depois da reestreia, e eu coloco aqui o ponto final na minha declaração de amor a um Imperador travestido de Anjo, entenderam porque eu não posso fazer críticas? Um crítico não pode fazer declaração de amor, uma palpiteira pode...

SERVIÇO PEER GYNT
Autor: Henrik Ibsen
Direção, adaptação, cenografia e figurinos: Gabriel Villela
Direção Musical: Babaya e Marco França
Preparação vocal e Direção de Texto: Babaya
Direção de Produção: Claudio Fontana
Elenco: Chico Carvalho, Cacá Toledo, Danila Cury, Daniel Maia, Daniel Mazzarolo, Helô Cintra, Jonatan Harold, Letícia Medella, Leonrado Ventura, Luciana Ramanzini, Marco Furlan, Mariana Elisabetsky, Maria do Carmo Soares, Romis Ferreira e Rogério Romera.
Quando? De 22 de fevereiro a 19 de março
Horários: Quarta a Sábado às 20h / Domingo às 19h
Onde: Teatro do SESI-SP – Centro Cultural FIESP – Ruth Cardoso
Avenida Paulista, 1313, Cerqueira César, São Paulo
Em frente à estação Trianon-Masp do metrô
Informações: Telefone: (11) 3146-7405
Classificação: recomendado para maiores de 14 anos
Duração: 110 minutos


1 commentaire:

Sandra a dit…

Adoro ler teus textos! SAUDADES, GURIA!!! E agora é ficar assim, babaaandoooo