Absoluto! Necessário! Nutritivo!
Foto: Deolinda Vilhena
Depardieu
chante Barbara! Um sonho! A imprensa e a divulgação anunciavam nove concertos
excepcionais! A maior atração da temporada! Em horas todos os ingressos
vendidos! Detalhe: ingresso a 55 euros* – menos de 200 reais – para ver Gérard
Depardieu. Sim, nada mais que a estrela maior do cinema francês, cantando
Barbara. Aos 68 anos Depardieu tomou para si, amigo amado e querido de Barbara,
a abertura das comemorações dos 20 anos da morte da Dama de Negro da canção
francesa.
Poderia
lotar o Palais des Congrès ou o Palais des Sports, mas a escolha recaiu sobre
uma sala pequena, mais conhecida como o teatro que durante décadas abrigou a
companhia de Peter Brook, o Théâtre des Bouffes du Nord. Na plateia apenas 530 pessoas.
Todo mundo se sentindo meio escolhido, meio privilegiado. A certeza de ver um
espetáculo único. E eu vi. Desde a entrada em cena dos dois Gérard. Aplausos
sem fim. Verdadeira ovação. Ele suspirou fundo, sufocado pelo amor que chegava
em forma de urros, aplausos, gritos de bravo, e o espetáculo nem tinha
começado.
Quando
começou eu entrei em órbita, da quarta ou quinta música em diante, Drouot eu chorei, muito, a ponto de ser
obrigada a engolir o soluço e o choro. A entrega de Gérard, o som do piano do
Daguerre, o fraseado perfeito de cada composição, “o coração e as tripas sobre
o piano” como disse Eric Bureau em uma crítica. Vídeos em minha cabeça, vários,
da vida da Barbara, da vida do Gérard, da presença dele, enquanto artista, na
minha vida. Impossível não lembrar que o que me trouxe até aqui foi a cultura
francesa, foi a língua francesa, foram os artistas franceses que fizeram de mim
essa paixão ambulante pela França.
Olho
aquele palco limpo, como cenário apenas os muros envelhecidos do Bouffes du
Nord. Em cena nada além de um piano: o de Barbara. E dois Gérard. O Depardieu,
amigo íntimo da cantora a ponto de ter um quarto na casa em que ela morava. E o
Daguerre, 17 anos como pianista da cantora. No roteiro quatorze canções de Barbara,
tão difícil explica-la para quem não a conhece. Algumas das canções dela são para
ouvir longe de uma Gilette, o risco é grande. Kit suicídio perde. Quem me
conhece sabe que eu gosto muito da Edith Piaf, pois saibam que Piaf – para mim –
é apenas um pardal perto de Barbara. Muito mais identificação com Barbara que
com Piaf, infelizmente no Brasil só uns poucos privilegiados tiveram acesso as
canções dela. Eu mesma só descobri verdadeiramente Barbara há 20 anos, quando
ela morreu.
Em
compensação minha paixão por Gérard Depardieu é antiga, e tão intensa mas tão
intensa que supera toda e qualquer loucura dele, desde sua conversão ao Islã – desconverteu! – à sua amizade com Poutine. Tudo eu perdoo em nome
do ator sem igual que ele é, na minha modesta opinião o maior que vi em cena e
no cinema. E eu vi muita gente em cena. A identificação que estabelecemos com
um ou outro artista não se explica. Não, eu não fui ver o Gérard Depardieu
cantar. Eu queria vê-lo dizer os versos de Barbara, como ninguém mais poderia
fazê-lo. E foi o que vi. Ele até canta. Lindo! Mas a intensidade com que ele
diz cada uma dessas palavras seja falando, recitando, dizendo ou murmurando é
que calou fundo no coração de todos os presentes.
Como
se não bastassem as canções, Gérard pinçou aqui e acolá frases de Barbara, que
ditas por ele me dava a impressão de que ele escrevera aquilo tudo e nos dizia
que era dela. Tamanha a entrega e a verdade, ele estava completamente entregue
em cena.
Olhava
de longe para Julie, tentando perceber a reação da filha que já tinha visto o
ensaio geral na véspera, buscava Roxane e Jean, os filhos mais novos, mas não
os vi, desabei quando Gérard começou a cantar A force de, letra de Guillaume Depardieu, morto em 2008, aos 37
anos de idade, musicada por Barbara e que diz assim: “C'est toi/Que j'ai perdu/
Je t'ai perdu…”. Chorei de soluçar. E lembrei que tive a chance de ver
Guillaume em cena.
Mas
o pior estava por vir: Nantes!
Voilà,
tu la connais l´histoire / Il était revenu un soir
Et
ce fut son dernier voyage / Et ce fut son dernier rivage
Il
voulait avant de mourir / Se réchauffer à mon sourire
Mais
il mourut à la nuit même / Sans un adieu, sans un "je t´aime"
Au
chemin qui longe la mer / Couché dans le jardin des pierres
Je
veux que tranquille il repose / Je l´ai couché dessous les roses
Mon
père, mon père
Il
pleut sur Nantes/ Et je me souviens
Le
ciel de Nantes / Rend mon cœur chagrin
Todas
as emoções misturadas, a interpretação doída de Gérard e as lágrimas escorrem...meu
consolo é que tem muita gente fungando no teatro. E que Gérard Depardieu
precisa respirar e enxugar as lágrimas. Ele disse nesse momento: “L’émotion ça
bouscule la bouche”.
Mas
ainda falta a minha canção preferida, ou uma das preferidas tantas e tão lindas
elas são: Gotingen.
O
faites que jamais ne revienne / Le temps du sang et de la haine
Car
il y a des gens que j'aime, / A Göttingen, à Göttingen.
Et
lorsque sonnerait l'alarme, / S'il fallait reprendre les armes,
Mon
coeur verserait une larme / Pour Göttingen, pour Göttingen.
A
emoção invade a sala, e entre uma canção e outra os aplausos e os gritos de
BRAVO são tão intensos que aumentam a minha emoção, “du jamais vu”, cada música
parecia ser a apoteose final. E Gérard é um afetivo, ele é generoso, ele
retribui a cada nota o amor que recebe desse público apaixonado diante do seu
artista. Ma plus belle histoire d’amour c’est
vous...isso estava implícito! Durante uma hora e quarenta e cinco minutos
nos todos vivemos uma bela história de amor. A tal ponto que ninguém queria ir
embora...
O
primeiro bis foi Une petite cantata, 530
pessoas acompanhando Depardieu nos versos:
Mais
tu es partie fragile vers l'au-delà
Et
je reste, malhabile fa sol do fa
Je
te revois souriante assise à ce piano-là
Disant
bon je joue, toi chante,
Chante
chante-la pour moi
Si
mi la ré si mi la ré si sol do fa
Si
mi la ré si mi la ré si sol do fa
O
segundo bis foi Dis, quando reviendras-tu?
, ele pede para que cantemos junto. Ninguém quer ir embora mesmo. Eles voltam
para o terceiro bis, um trecho de L’île aux mimosas de Lilly Passion,
espetáculo que Barbara fez com Depardieu em 1986. Verdadeiro triunfo com
direito a chuva de flores, rosas brancas e mimosas amarelas. Inesquecível. Deslumbrante.
Mágico. Colocou o público no bolso desde o primeiro minuto, na verdade ao
comprar o ingresso estávamos todos no bolso de Gegê.
Ele
fez um agradecimento lindo, e eu copiei o texto do teleprompter**, mas depois
vi que era mais ou menos o mesmo do CD: “Merci à vous de m'avoir permis de
connaître à 60 ans et des poussières ce bonheur de chanter, merci à vous, merci
à elle.”.
E
tome aplausos...em dois meses em Paris e mais de 20 espetáculos foi a primeira
standing ovation que vi. Delírio total. Na plateia um Charles Aznavour de 92
anos prestigiando o colega e homenageando Barbara. Lindo gesto. Delicadeza
total. E quando fui pedir a ele para fazer uma foto e disse que era brasileira,
ele não perdeu a deixa e mandou um português de Portugal: és brasileira? A conversa
engatou no ato. Como diz o Cacique francês adora uma coisa éxotique.
Lembro-me
que quando comprei meus ingressos, um para a estreia, dia 9 e outro para o dia
14 – dia da Saint-Valentin e quis me dar Depardieu
chante Barbara de presente – só lamentei não ter 500 euros sobrando. Professora
universitária brasileira, fazendo post-doc sem bolsa em Paris, significa
dividir o salário por 4 em função das taxas de câmbio e das taxas para a
remessa do dinheiro – se eu tivesse essa graninha sobrando iria ver esse show
todas as noites, como nos anos 70 vi duas vezes os shows da Liza no Hotel
Nacional; como nos anos 80 vi dez shows da Mercedes Sosa no Canecão; como meu
filho recentemente viu 12 shows da Madonna em sete países diferentes, lá em
casa é assim: a gente gosta de pouca gente, mas quando gosta, gosta mesmo.
Hoje
ouvi o disco sem parar. É genial. E leio as críticas que anunciam: Depardieu
triunfa com as canções de Barbara. Terça-feira estarei lá, porque como dizia o
poeta: o importante é que nossa emoção sobreviva e eu completo: precisamos
alimentá-la. Merci, Gérard, et à bientôt.
*Ingresso
a 55 euros num país com salário mínimo de cerca de 1.300 euros. Menos de 200
reais, só que no Brasil o salário mínimo é inferior a 900 reais. Comparem com
os preços dos shows daí e me digam se não tem algo de podre na República dos
Bananas (nós).
**
Sim ele tinha dois teleprompter em cena e, em 2004, quando fez La Bête dans la jungle com a Fanny
Ardant, usava ponto eletrônico. Bobagem. A memória vacila e a tecnologia está
aí para ajudar. Prefiro Depardieu com teleprompter, ainda assim ele é
infinitamente superior a 99% dos atores que já vi em cena. Pior é quando tem
memória e não tem talento, aí não há tecnologia que salve.
PS - Vejam as fotos abaixo...tem um monte
Cartaz do concerto
Noite de lua cheia
Foto: Deolinda Vilhena
Lotação esgotada para a temporada toda
Foto: Deolinda Vilhena
Julie Depardieu
Foto: Deolinda Vilhena
O palco do Théâtre des Bouffes du Nord
Foto: Deolinda Vilhena
A vista do palco do meu lugar D2
Foto: Deolinda Vilhena
O prazer de ter o CD um dia antes das lojas
Foto: Deolinda Vilhena
Philippe Katerine e Julie Depardieu na plateia
Foto: Deolinda Vilhena
Os dois Gérard, Depardieu e Daguerre, emocionadíssimos
Foto: Deolinda Vilhena
Chuva de mimosas
Foto: Deolinda Vilhena
Aplausos em profusão ecoavam pela sala
Foto: Deolinda Vilhena
O piano de Barbara, o patuá da noite
Foto: Deolinda Vilhena
Sem palavras...
Foto: Deolinda Vilhena
A presença de Barbara era quase visível
Foto: Deolinda Vilhena
O público não queria deixar a sala
Foto: Deolinda Vilhena
Julie Depardieu entrevista na porta de entrada dos camarins
Foto: Deolinda Vilhena
Proibido chegar perto do piano, segurança delicada mas atenta
Foto: Deolinda Vilhena
Que tumulto era esse no palco?
Foto: Deolinda Vilhena
O tumulto tinha nome: Charles Aznavour
Foto: Deolinda Vilhena
Momento de glória, euzinha com Aznavour
Foto: Deolinda Vilhena
Charles Aznavour pode inspecionar o piano de Barbara
Foto: Deolinda Vilhena
Mathieu Amalric estrela do cinema francês na porta do teatro
Foto: Deolinda Vilhena
Uma rosa de Gérard Depardieu
Foto: Deolinda Vilhena
Uma hora depois estamos todos na porta do teatro
Foto: Deolinda Vilhena
A lua também ficou à espera de Gege ou Dede
2 commentaires:
Deolinda, vc escreve muito bem. E um imenso prazer acompanhar suas aventuras culturais pela cidade luz . Amo o teatro, a Franca e a cultura francesa. Ainda aguardo ansioso o 2 ato dos seus 40 anos de teatro. Bjs
Muito obrigada por suas palavras Fabricio...estou em busca de uma brecha de tempo para terminar a segunda parte dos meus 40 anos de teatro, mas também escrever sobre Une chambre en Inde, La Règle du jeu e sobre Peer Gynt, aproveitando a deixa da volta da temporada...
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